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quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Crítica: "Que Horas Ela Volta?"







"Senzala e casa grande pós-moderna" - André Gatti



Dirigido e roteirizado com maestria por Anna Muylaert, O Filme "Que Horas Ela Volta?" é um retrato novo da escravidão velada existente no País à menos de 15 anos atrás, e que ainda encontra suas características na atualidade, entre ''normas pré estabelecidas'' na sociedade. É uma cronica fílmica de diferença de classes, de dominação e dominados, onde ''gentilezas embranquecidas'', são disfarces de chibatadas endurecidas à calos nas mãos.
Protagonizado por Regina Casé numa atuação envolvente - e ate de certa forma - pueril, o filme traça entre sutilezas e sensibilidade - no sentido de se ater a detalhes de gestos, olhares e palavras/tom de voz - um cotidiano de realidade que nos atinge dia após dia, desde que nos entendemos por gente.
"A pernambucana Val se mudou para São Paulo a fim de dar melhores condições de vida para sua filha Jéssica. Com muito receio, ela deixou a menina no interior de Pernambuco para ser babá de Fabinho, morando integralmente na casa de seus patrões. Treze anos depois, quando o menino vai prestar vestibular, Jéssica lhe telefona, pedindo ajuda para ir à São Paulo, no intuito de prestar a mesma prova. Os chefes de Val recebem a menina de braços abertos, só que quando ela deixa de seguir certo protocolo, circulando livremente, como não deveria, a situação se complica."
Regina Casé é Val, uma empregada domestica que passa seus dias entre lavar roupas, arrumar a mesa, servir janta, café da tarde, almoço, lavar pratos, varrer a casa, limpar a casa, arrumar camas, quartos, servir água, colocar prato, tirar prato, estender roupa, ser baba, garçonete... Uma "segunda mãe" para o filho dos patrões, e assim ser considerada 'quase da família'. O problema esta nesse ''quase''. O ''quase'' implícita limites. Limites esses estabelecido por sua classe social. E é aqui que o filme se torna obra. O que o filme retrata é a desumanização que ha em nossa sociedade, ao estabelecer condutas de acordo com nosso status social. De acordo com nossa etnia, nossa "origem". 


Jessica surge como uma mulher empoderada sim, mas que ao primeiro momento diante da hipocrisia condicionada de todos nós, aparenta ser uma mulher cínica e ambiciosa que não sabe seus limites. Quando no entanto a existência dela sob aquela casa burguesa do Morumbi em São Paulo é a unica célula coerente de quebra de paradigmas. O "Não saber seu lugar" de Jessica é justamente a metáfora do que ocorre no nosso cenário politico atual. Jessica é o tapa na cara, do patrão, do cis branco, do machista, do xenofóbico pró meritocracia que tem que aguentar o pobre, o negro, a trans, o nordestino, a mulher; sendo arquiteta na FAU e pegando o mesmo avião que eles. Avião, e não mais carroça ou somente ônibus.

É doloroso notar a ingenuidade resignada de Val a cada ordem que recebe. Por que para Val e tantos outros Brasileiros; classe A não se mistura com classe C. Por que se entende que existe ''sorvete de patrão'' e ''sorvete de empregada''. Porque se entende que quem limpa a piscina não pode usar ela. Nesse sentido, Jessica - vivida com surpreendente atuação por Camila Márdila - é a quebra de reflexão na narrativa, ao escancarar esses tais limites e formas de conduta ao não se submeter a eles em nenhum momento. É o tapa na cara, do gueto indo pra faculdade e não sendo apenas matéria de curso onde antes ele - eu, nós - não entravamos.
Se não bastasse o texto minuciosamente trabalhado, Muylaert ainda nos brinda com um cenário de ataque machista, na figura do aparente chefe de família - vivido por um apático Lourenco Mutarelli - que nunca precisou trabalhar na vida, e que vê na menina filha da empregada seu direito de macho de te-la como posse.
Tecnicamente o filme é um esmero a parte, Desde os planos cuidadosamente pensados para simbolizar as relações de poder e vulnerabilidade - Val constantemente aparece ao fundo da tela ou ao lado esquerdo, ou mesmo em cores mais apagadas que os demais - , o som - que sempre foi um problema em nosso cinema por questões de verba mesmo - aqui é limpo, funcional e sem nenhuma falha ou dificuldade de compreensão.
O mesmo se aplica a seu filho Fabinho - o jovem ator de "O Ano Que Meus Pais Saíram de Férias", Michel Joelsas - que por mais 'fofo' que aparente ser, revela traços desse machismo e domínio burgues que lhe é dado, em pequenos gestos, em pequenas frases, não menos nocivas. É interessante notar também que a relação de mãe e filha no filme - onde o filme internacionalmente esta recebendo o titulo de "A Segunda Mãe" por isso - se estabelece de forma dura mas profundamente bela, quando se nota, que o afeto de Val por Fabinho, não é exatamente afeto a ele, mas um reflexo de seu amor e cuidado de mãe que gostaria de ser destinado a filha que morava longe. Val vê em Fabinho o seio que não pôde dar a filha por anos. O filme ainda nos brinda com uma das cenas mais emblemáticas e belas que assisti esse ano, a cena final da piscina. Como bem diria Cazuza: "a piscina esta cheia de ratos" sim! E que bom. A sociedade terá que se acostumar com suas Val's e Jessica's. As Barbaras terão que aceitar sim, que os pires e as xícaras, já não são mais uniformes. Agora é preto no branco.
Constelação de estrelas!

Um tapa na cara fílmico de extrema delicadeza, dor e revolta real que já chegou se tornando uma obra prima de Orgulho pro cinema nacional, mas de vergonha para nossa sociedade diante do mundo.





"Tipo campos de concentração, prantos em vão

Quis vida digna, estigma, indignação
O trabalho liberta, ou não
Com essa frase quase que os nazi, varre os judeu? extinção
(...)
Médico salva? Não! Por que? Cor de ladrão
Desacato invenção, maldosa intenção
Cabulosa inversão, jornal distorção
(...)
Cura baixa escolaridade com auto de resistência
Pois na era cyber, ceis vai ler
Os livro que roubou nosso passado igual alzheimer, e vai ver
Que eu faço igual burkina faso
Nóiz quer ser dono do circo
Cansamos da vida de palhaço
É tipo moisés e os hebreus, pés no breu
Onde o inimigo é quem decide quando ofendeu
(cê é loco meu)" - Trecho da música "Boa Esperança" - Emicida


** Como nota, Gostaria de salientar o contentamento que me dá notar uma obra tão bela e pertinente, com toda essa aclamação sendo cria de varias mulheres profissionais. Desde o protagonismo ate a equipe de produção geral.**


Trailer:


Ficha técnica



Elenco: Regina Casé, Karine Teles, Lourenco Mutarelli, Michel Joelsas, Helena Albergaria, apresentando Camila Márdila, com as participações especiais de Luís Miranda, Theo Werneck e Antônio Abujamra
Direção: Anna Muylaert
Roteiro: Anna Muylaert
Produção: Fabiano Gullane, Caio Gullane, Debora Ivanov e Anna Muylaert
Produção Executiva: Caio Gullane e Claudia Büschel
Direção de Fotografia: Bárbara Alvarez
Direção de Arte: Marcos Pedroso e Thales Junqueira
Figurino: Claudia Kopke e Andre Simonetti
Maquiagem: Marcos Freire e Andre Anastácio
Som Direto: Gabi Cunha
Montagem: Karen Harley
Produção: Gullane
Produção Associada: Africa Filmes
Coprodução: Globo Filmes
Distribuição: Pandora Filmes