Pages

sábado, 23 de março de 2019

Noite Inteira - Pitty e o som da Bandeira Que Ainda Pulsa




Matriz.

Tudo aquilo que é considerado base, alicerce. Pode significar algo diverso em vários nichos e área. É o órgão das fêmeas dos mamíferos, na cavidade pélvica, onde o embrião e posteriormente o feto se desenvolvem. O útero.
É lugar onde algo é gerado e/ou criado.
No sentido figurado, é aquilo que é fonte ou origem.
"aquele gesto foi a matriz da revolta".
Até na agricultura, é a planta da qual se retiram mudas para reprodução.
E mesmo na indústria fonográfica, é a chapa metálica que serve de base pra feitura e prensagem de discos.

Em Noite Inteira, Pitty parece ter pegado todos esses conceitos que servem de forma alegórica para explicar o nome de seu novo álbum - Matriz - previsto pra ser lançado em meados de Abril, para estruturar todo o cerne da canção. Ao contrário da apresentação ao vivo da música ocorrida em um show no Rio de Janeiro, ano passado, a versão oficial de estúdio, perde a visceralidade de combate, dada pela catarse coletiva humana que carrega, e ganha ares quase oníricos. Não, não perde. Talvez, condense-a

Como se estivéssemos presenciando um mundo distópico e psicodélico, com sons e zumbidos dispersos, mas que mantém a mente em alerta. Há uma espécie de "pio" na harmonização vocal que costura cada ponte da música, que por falta de referência melhor pensada, me recordou a canção "Eu" da banda Pato Fu. Isso pq, há alguns toques de música eletrônica nessa harmonização, que me lembrou o uso do teremim (ainda que esteja não esteja contido de fato aqui), um instrumento musical eletromagnético cujos sons são obtidos com movimentos da mão. Quando a mão se aproxima do teremim, o som fica agudo. Quando se afasta, fica grave.
Além de produzir os barulhos "marcianos" dos filmes trash de terror, o peculiar instrumento inventado por um russo capturado pela KGB, é considerado uma espécie de precursor do sintetizador, ou seja, da própria música eletrônica. Não sei até que ponto essa foi a intenção dessa harmonização - remeter a isso - mas orna completamente com a proposta anunciada pela Artista, sobre sua Matriz.

A bateria ganha ares de bumbo (soa como tal), abafado, que faz toda a canção se assemelhar a uma faixa antiga (ainda que contenha nuances metalizadas). Saída de algum disco de vinil empoeirado, achado nos destroços de alguma ocupação recém abandonada. É como se ouvissemos Noite Inteira ser entoada através de um gramofone. E isso não é ruim. Pelo contrário. Essa "sujeira" e "ruídos", conceitua com toda a estética e tema que a música parece pedir.

Mas, essa impressão - antiga -  não se estende a letra. Aqui sim, a visceralidade está presente e intacta como já se viu ao vivo. Já na primeira parte do refrão, Noite Inteira ganha status de hino, de manifesto. Ao refletir e explicitar todo o sentido de luta e resistência atual do nosso país. A lembrança de que "estar na rua é pra vida inteira". Ocupar espaço, atingir a liberdade e cada direito através da luta. Da voz. Do manifesto. Da revolução.
E aqui, ela usa a Revolução, pra conceder a canção, numa virada sensacional, uma nota de tango argentino, ou de uma salsa quase burlesca, talvez resquícios de bolero tímido, não sei, amparados pela voz potente e dessa vez um ainda mais imponente de Lazzo Matumbi, a lenda baiana, que entoa "Respeite a existência ou, espere Resistência".

E isso vindo de um homem negro da Bahia, que construiu o próprio nome e trabalho em resistência e combate através de sua arte, ganha uma representatividade e símbologia tremenda. Ainda arraigada à sua Matriz, Nancy Viegas, surge como o som de um sopro, permeando toda a faixa. Um senhor negro e uma mulher, ambos de combate e resistência em cenários dispersos e semelhantes, numa música que fala sobre resistir e lutar. Sobre o direito de estar. Sem cansar. Sem planejamento de fim.

"Pra pertencer e ser, em toda esquina", Pitty nos lembra que é preciso entrar em Guerra. Não guerra com quartel. Nem com armas de fogo. Não guerra de mortes e violência. Mas, guerra de levantar-se, ocupar, falar, bradar, resistir e reexistir. Uma guerra de força. Força humana. Energia humana. De sociedade. De coletivo. Olhar pra quem se estende e lhe estende a mão nessa guerra. Nesse embate. Entender por fim, que o caminho rumo a direitos e liberdade, de ser quem se é, te ter o que se tem direito de ter, é uma longa estrada. Uma ladeira. Que ao tentar subir, se encontram derradeiros e insistentes "nãos" por parte de quem possui poder. Enquanto que, pra descer por ela, são "sim, atrás de sim", lhe empurrando pro precipício. E estar nessa ladeira, mesmo em queda, se recusando a deixar de subir, é o grande segredo. É a grande peleja. É o caminho pra mansidão!

Noite Inteira, como a bandeira, ao pulsar se mostra sangrenta. Vermelha, Negra e com suspiros de luz na escuridão. É uma música madrugal, soturna, que embala até mesmo, a mais íngreme ladeira. Gente viva! Unindo aspirações do passado, em diante, de um difícil, mas já com o som devido, futuro.

Afinal, se compreende que como já dizia Elza Soares certa vez: o futuro é agora!

~Sobre o Clipe:


Hoje às 19h15 pontualmente, rolou a estreia do clipe da música, junto a uma live no Instagram da roqueira. O clipe que tem direção de Carlos Pedreañez e ilustrações de Paulo Pires, é todo em animação 3D com ilustrações texturizadas e de rotoscopia (técnica de animação onde um modelo humano é filmado ou fotografado em sequência e o desenho é feito com base nessa "captura". Através do uso do aparato chamado rodoscopio. Essa técnica é super antiga e tem exemplos diversos em animações como Branca de Neve e os Sete Anões, Alice no País das Maravilhas, e até mesmo jogos de vídeo game e mesmo filmes em live Action como Star Wars, clipes como o clássico do A-ha.  Pode ser usado para animar seguindo uma referência filmada tbm. Ele pode ser considerado um precursor da moderna captura de movimento digital).


Que segundo a própria Pitty na live, foi feita em parte através de fotografias e captura de imagens durante a estrada.

O clipe funciona quase que como uma apresentação, ou abertura de série, no melhor estilo telão de show, para o álbum (ainda nem lançado). Parece uma abertura visual. Tem esse cunho. Mostra Pitty como figura central, tendo sua mente e pensamentos e aflições expostas. A respeito do tempo, e da sociedade em que vive. Sobretudo através do olhar que tem do próprio espelho. Pitty olhando pra si. Pra dentro de si e externando o que o mundo passa. Nesse sentido exato o clipe parece ser quase um teaser dessa Matriz. Uma viagem por dentro da mente de Pitty. De seus olhos, constantemente em evidência das imagens animadas. Ao fundo, cenas de protestos, de embates de rua. De uma cidade sitiada. Por uma energia animal. De engravatados e rugidos.

Há uma referência a Pachamama através de cartas que lembram as de tarot (curiosamente sob as águas de uma torneira).


Pachamama é considerada em diversas culturas como A Deusa Maior, A Mãe Terra é a principalmente nos Andes, Bolivia e Peru, relacionada também à terra, fertilidade, mãe e principalmente Aquela que representa uma grandiosa divindade feminina.

Pacha Mama ou Pachamama é a Deusa da fertilidade ou a maior Divindade feminina cultuada em diversas culturas – principalmente a Inca -, onde ela teve suas origens na mitologia do mesmo local. Seu nome deriva-se de Quéchua, uma antiga língua utilizada pelos povos andinos, anteriores aos Incas. Pachamama, tem o significado de “Mãe Terra” ou o verdadeiro significado como ” Mãe de todos”, lembrando que Mama é “Mãe”, e o Pacha como “terra”, “mundo”,”cosmos”, assim chamada também de “Mãe Cósmica”.


Mesmo com a invasão dos espanhóis nas terras Incas – e depois de terem destruído quase tudo -, as representações escupidas ou desenhadas da Pachamama ainda seguem vivas e foram preservadas, continuando permear seus mistérios por toda cultura andina até nos dias de hoje.

Segundo a história, as mulheres não tinham poder dentro da civilização Inca, mas foram figuras cruciais para montarem o sistema de crenças de toda a sociedade, isto é, se transformaram no motivo pelo qual tudo existe e passaram a ser partes essenciais das instituições religiosas. Por isso que dentro de todo esse encadeamento de cultura, Pachamama é a figura central e Aquela Mãe geradora de vida, que doa sentido e alma para todos, tanto para os seres humanos quanto para a terra.


É possível também enxergar outras cartas simbolizando outras mitologias e crenças, até mesma a esfinge. Assim, o clipe adota uma enxurrada de simbolismos e significados que voltam a nos trazer a ideia de Matriz, de Base, de essência, mas com visão de futuro. Como um museu ou um livro de história. Olhar pro passado e resgatar a energia necessária pra combater o presente, pra modificar e salvar o futuro.

O clipe nada mais é do que um "gosto" do que o álbum promete oferecer a respeito da visão de mundo e de si mesmo, de Pitty atualmente.

Link para o clipe: https://youtu.be/DbIRvTW2PFA

Ou através do player abaixo:



*. "Noite INTEIRA" está disponível pra venda e audição em todas as plataformas de música.