“- Eu não posso continuar fingindo que faço parte desse
lugar.
- mas afinal, a que lugar você pertence?”
Jotuomba é um pequeno vilarejo em que ninguém morre há muito
tempo e o cemitério está trancado com cadeado. Cada morador cumpre sua função e
assim seguem os dias. Madalena (Sonia Guedes) faz pão para o armazém do Antônio
(Luiz Serra). Como todos os dias, ela atravessa o trilho, onde o trem já não
passa há anos, limpa o portão do cemitério trancado, ouve o sermão do padre e
almoça com os outros velhos habitantes da cidade. Vivendo da memória do marido
morto, Madalena é acordada por Rita (Lisa E. Fávero), uma jovem fotógrafa que
chega na cidade fantasma de Jotuomba, onde o tempo parece ter parado.
Sinopse acertada de uma premissa instigante, bela e extremante
sensível e perturbadora.
Com um dos títulos mais belos do ano, “Historias Que Só
Existem Quando Lembradas” cria uma fabula atemporal e anacrônica sobre um
vilarejo estático no tempo e espaço, onde as memórias são a chave para sua sobrevivência
arquetípica.
O filme que conta quase sempre com enquadramentos estáticos,
no meio da tela, nos mostra um pequeno vilarejo esquecido no tempo. Rachaduras nas
paredes, sem animais visíveis, relógios quebrados, poeiras no soalho e nas
estantes. Onde o cotidiano se repete continuamente sem cessar. Madalena (numa
fabulosa interpretação de Sonia Guedes) segue sua vida numa repetição quase
cronometrada: acorda ainda de madrugada, faz o pão e o assa. Leva-os logo de
manhã ate o armazém de Antonio ( numa atuação sóbrio e repleta de tons cômicos de
Luiz Serra), onde ela se encarrega de enfileirar e arruma-los na estante, a
contra gosto de Antonio que ao fazer o café – que Madalena julga ser ruim –
reclama do modo em que ela dispõe os pães. Então ambos sentam-se do lado de
fora do armazém para tomarem seu café da manhã, enquanto conversam amenidades
ou ficam em permanente silencio. A tarde, se encontram com os outros –
aproximadamente- dez habitantes do vilarejo, todos velhos, onde se sentam a uma
mesa de madeira ao ar livre, rezam e almoçam juntos. Em seguida parte para a única
igrejinha existente e ouvem o sermão do Padre. À noite, Madalena volta para sua
casa, onde escreve cartas pequenas a seu finado marido Guilherme. Cartas que
ela endereça a ele numa rebuscada letra e guarda numa caixa de papelão antiga.
No dia seguinte, tudo se repete outra vez. As mesmas falas,
os mesmos gestos.
Ate que a chegada de Rita, uma jovem andarilha fotografa,
que pede hospedagem na casa de madalena, muda sutilmente a rotina de todos no
vilarejo, apenas por sua presença.
É tocante notar as diferentes sutis que o roteiro imprime a
narrativa com a chegada da nova personagem. E principalmente o contraste desta
com o todo do filme. Rita é jovem, dinâmica, independente, questionadora e
observadora, cabelos tingidos e curtos, que usa roupas atuais e porta diversas câmeras
e um Ipod.
Tudo em Rita se contrasta diretamente com os moradores e o próprio
vilarejo sem nome.
Ao redor, o tempo parece ter se extinguido. Como Antonio diz
em certo momento do filme “Aqui nós nos esquecemos de morrer”.
Seus moradores parecem se fundir aos poucos, as pedras e as
paredes rachadas. Como se fossem um único organismo remanescente de uma Era
antiga. Quase uma cidade fantasma.
Contando com uma narrativa densa e misteriosa, com ares de
terror e suspense latente, em parte pela escolha de montagem eficaz e correta de acostumar o expectador àquela rotina dos moradores, fazendo com que uma minima mudança, um minimo utensilio a mais ou a menos chame nossa atenção imediatamente; o filme traz uma esplêndida fotografia repleta de
texturas saturadas, com imagens deslumbrantes e bucólicas e planos inspiradores
e enquadramentos belos e funcionais, para mostrar a emprestar o tom de
contemplação, feito obras de natureza morta que o enredo exige. Sem muitos diálogos,
o filme ainda tem o bônus de não possuir trilha sonora, provindo no silencio ou
nos sons ambientes, como a respiração de seus personagens; seu maior trunfo.
Numa direção segura de Murrat, 'Historias Que Só Existem Quando Lembradas', cai fundo em reflexões humanas, de vida, morte e caminhos a
se seguir. Coloco em xeque nossas lembranças e sonhos e nossa visão de mundo
vivo diante do fatídico fim que é o descanso eterno. Esteja nas metáforas contidas
nas fotografias em preto e branco com superexposição, onde seus personagens
surgem quase apagados, como espíritos intrusos de um mundo vivo; seja nos
cadeados em volta do único cemitério da cidade, onde a entrada é proibida e tem
a fachada repleta de flores cultivadas com afinco por Madalena. Seja na rotina estática
e repetitiva, ou mesmo no olhar de seus moradores sempre vazios e desconfiados.
Numa sequência de tirar o fôlego, em que Madalena aceita por
fim tirar uma fotografia de si, o filme ainda recai sobre uma alusão ao eterno
que as fotos captam. Mágico.
Ao final, o filme nos brinda com uma tocante, bizarra e
enregelante reviravolta, permeada por um fio cômico peculiar, provando que se
tornou não só um filme a ser lembrado, como também jamais esquecido.
FICHA TÉCNICA
Diretor: Júlia Murat
Elenco: Sonia Guedes, Lisa E. Fávero, Luiz Serra, Ricardo
Merkin, Antonio dos Santos, Nelson Justiniano, Maria Aparecida Campos,
Manoelina dos Santos, Evanilde Souza, Julião Rosa, Elias dos Santos, Pedro
Igreja
Produção: Lucia Murat, Julia Murat, Christian Boudier, Julia
Solomonoff, Felicitas Raffo, Juliette Lepoutre, Marie-Pierre Macia
Roteiro: Julia Murat, Maria Clara Escobar, Felipe Sholl
Fotografia: Lucio Bonelli
Duração: 98 min.
Ano: 2011
País: Brasil, Argentina, França
Gênero: Drama
Cor: Colorido