"Viver sem conhecer o passado é viver no Escuro"
No ultimo dia 23 de fevereiro, as 10 e meia da manhã – um
sábado – o Criticofilia foi convidado a assistir ao longa de animação nacional
“Uma Historia de Amor e Fúria” que estreia no país somente dia 5 de Abril.
A sessão se iniciou por volta às 11 da manhã, com pouco mais
de seletas 50 pessoas em sua maioria Jovens; entre blogueiros, sites
especializados em cinema/animação.
Logo de inicio é possível notar que a produção é ousada. O
longa inicia-se apresentando seus créditos iniciais numa edição de som
frenética com sons de helicóptero ao fundo. Que dá vazão em seguida a uma cena de um homem e uma mulher
encurralados no alto de um grande prédio espelhado tentando escapar de alguma
coisa que não sabemos exatamente o que é.
Com direção e roteiro de Luiz Bolognesi (roteirista do longa
“ Bicho de Sete Cabeças”) “Uma Historia de Amor e Fúria” brilha pela ousadia de
trazer a tona uma animação em um nível de produção rara no país, mas que peca
ao tentar abocanhar mais do que deveria.
O filme conta a historia do Brasil a partir da visão dos
esquecidos. Ele é dividido em quatro partes, em quatro épocas.
No século XVI, Por volta de 1556, somos impelidos a conhecer
a historia de Abeguar (Selton Mello) índio tupinambá que após um voo milagroso
para escapar de uma onça, descobre ser um espírito escolhido para guiar seu
povo contra as forças malignas. Abeguar é apaixonado por Janaína (Camila
Pitanga). Apesar do pajé de sua tribo acreditar que Abeguar é o escolhido para
chefiar o povo contra um destino falho, o restante da tribo não crê nisso, e Após
assistir a morte de Janaína e de boa parte de sua tribo, durante uma caçada,
Abeguar ao tentar dar fim a sua vida, se transforma em um pássaro vermelho e passa a vagar pelo Brasil
durante anos, até que reencontra Janaína, em 1822 reencarnada, encarnando-se
assim como o negro Manoel do Balaio, para mais tarde se tornar líder do
movimento contra a opressão do governo, conhecido em nossa historia como Balaiada.
Mas os destinos dele e de Janaína parecem nunca conseguir viver juntos em
harmonia ou paz e assim, Manoel do balaio novamente se transforma em pássaro,
onde Muitos anos depois, em 1968, agora sob o nome de Cal, ele reencontra sua
amada novamente, dessa vez fazendo parte da luta armada contra a ditadura,
durante a ditadura militar. Mas o destino e suas lutas novamente lhe assaltam e
mais uma vez a historia se arrasta em sangue e destruição, ate que em 2096 em pleno
futuro caótico, ele, agora um renomado jornalista reencontra sua Janaína –
prostituta e agente da resistência- que luta contra a opressão da água. Neste
futuro, a água potável é motivo de guerra.
Com esse enredo, o longa traça e remonta a historia de nosso
país a partir da versão daqueles que não receberam estatuas e musicas em seus
nomes, como bem diz uma fala em certo momento:
“Meus heróis nunca viraram estátua, morreram lutando contra
quem virou”.
O filme possui uma coerência estrutural excelente. Assim
como sua trama. O texto é lindíssimo, que respeita o país e principalmente seu
povo, demonstra ate mesmo um patriotismo não pela flâmula, mas pela nação, povo
que raramente vemos no cinema nacional atual.nada explicito, mas o que esta
implícito que faz a diferença.
A inteligencia do texto esta justamente em construir
personagem icônicos e fortes que demonstram ter muito a oferecer. Como o paralelo
que faz entre as lutas e o amor. O amor que move sua trajetória imortal a
procura de sua amada, que sempre esta envolvida na luta contra a opressão. Sempre
do lado mais fraco, sempre do lado certo.
E é interessante notar a evolução que o roteiro possui e sua
narrativa, com relação aos protagonistas. Se iniciamos com um jovem guerreiro
assustado, mas determinado a ajudar seu povo e guia-lo rumo a salvação. No
final, temos um jornalista- que pela ética busca a verdade e transmiti-la ao
povo- conformado, sem vontade de lutar por nada, indignado com a situação a sua
volta, mas sem motivação após tantos anos de lutas e derrotas. Ja Janaína que a principio nada mais é do que uma aspirante a mãe e matriarca de seu povo, que apenas apoia e segue seu amado, cuidando dele, no futuro ela assume uma persona extremamente ativista, pro-ativa e que se torna a motivação de seu 'amado'.
É uma analise muito interessante do que vemos hoje no nosso país
em vários sentidos. Um povo que é conhecido no mundo todo e entre si mesmo,
como um povo que sempre lutou por liberdade, mas que hoje em dia, parece
saturado de derrotas, casado de lutar e vaga apenas conformado com o que lhe é
ofertado.
Assim o texto assume uma critica social enorme.
Outro ponto que chama atenção no roteiro desse longa é o
cuidado que tem em colocar os oprimidos como verdadeiros heróis de nosso pais. Ao
mostrar um lado da historia brasileira que pouco de nós conhecemos, tendo como
pano de fundo um herói tipicamente nacional – ora tupiniquim, ora descendente
de negros escravos por exemplo-.
Porem, todo o cuidado dado ao texto se perde um pouco nos
diálogos, nada naturais e que soam caricaturais. Problema esse que não esta
exatamente nas atuações – isso porque as vozes ao contrario do que se
imaginaria, foram performáticas e não apenas dubladas. Camila Pitanga, Rodrigo
Santoro e Selton Mello dentre outros atores presentes na produção, atuaram com
suas falas e após isso criaram a animação em cima dessa atuação deles.-. Ainda aqui há uma falha nos minutos iniciais da primeira parte, no quesito sincronia das falas com os movimentos das bocas dos personagens.
Outro problema esta no desenvolvimento da 3° parte em
diante, que soa corrido demais. Isso porque não há tempo de se desenvolver
tantas tramas e subtramas, tanto texto e ações naqueles poucos minutos
reservados a cada parte. Tudo soa tão orgânico e delimitado de inicio, mas se
perde ao final. Com resoluções impalpáveis. E isso é apenas problema de tempo e
não de roteiro. Porque a historia esta la... A narrativa esta la. Mas não há
tempo suficiente para elas acontecerem em tela. E contudo, é irônico ate, que a terceira parte, a parte da Ditadura Militar seja a mais interessante em potencial para termos narrativos.
A sensação que fica é a de que falta algo sempre. Quando a
historia começa finalmente a engrenar, quando os personagens finalmente começam
a ser trabalhados, quando se começa a criar as relações entre os tempos, entre
as tramas, o longa dá um salto na historia e já inicia outra. Uma
pena.
Mas nem isso tira o brilho da produção que inegavelmente
possui mais acertos do que falhas.
O design de animação é algo fabuloso, como o próprio
diretor explicou, com paletas de cores que remontam cada estação do ano em cada
uma das partes que transcorrem, com detalhes ínfimos em cada cena e cenários
lindamente compostos.
Os desenhos foram todos feitos essencialmente à mão, numa
mistura fantástica entre HQ’s e influencias dos clássicos Disney com animes japoneses
– como o fato de utilizarem a técnica de 8 frames por segundo e não os clássicos
habituais 24 frames por segundo; característica essa dos animes, que alem de
significarem um menor custo de produção, ainda conferem aos traços de movimento
dos desenhos algo mais contido, priorizando muito mais as expressões, a emoção
transmitida do que a ação corporal-, e as clássicas Graphic Novels europeias. O
que se conseguiu em tela, é uma animação rebuscada, que contou com a
participação de quatro diferentes desenhistas- um para cada parte da trama- que em forma de hibrido criou um traço único, ainda que não nos remeta a algo próprio, se torna
original por conseguir ser bem sucedida- vide detalhes de direção de arte em
cada cenário principalmente na porção do futuro, onde cada cor, cada objeto
possui significados que nos remete a todas as outras vidas do protagonista, por
exemplo-. Muitas vezes a animação nos remete a estarmos vendo um grande livro
de animação em 3D. Alias o 3D também é usado na porção final, onde há uma
profundidade de campo maior do que nas outras 3 partes anteriores.
Os traços
evoluem com a narrativa.
Outro acerto marcante esta na trilha sonora e na sonoplastia
que contem musicas tipicamente brasileiras com influencias do norte e nordeste
do país e conta com nomes como Nação Zumbi, Martin Mendonça, Pupilo, Lenine e
Lucas Santanna. Há uma canção belíssima interpretada por Camila Pitanga que
transforma a cena correspondente em questão num dos momentos mais belos da projeção.
Os efeitos sonoras também são um primor, que dão o tom certo
nas cenas de ação.
É importante salientar que essa não é uma animação infantil.
É uma animação adulta, no mínimo uma animação infanto-juvenil, pois contem conteúdo
adulto como cenas violentas e teor sexualizado, nada explicito, mas que
definitivamente não é para menores de idade.
Alias é preciso dar credito aos atores também que
expressaram muito bem em suas falas, impostações de voz, doando sotaques e vícios
de linguagem a seus personagens.
Interessante ainda é a escolha de caracterizar Janaína sempre como a mesma pessoa em todas as reencarnações, mudando talvez um pouco
os traços apenas no futuro. É a única personagem que permanece com o mesmo nome
e as mesmas características físicas.
Após mais de 6 anos de produção, com inúmeras mudanças de
titulo – antes se chamaria “As Lutas” e depois o atual “Uma Historia de Amor e Fúria”, pois
segundo o diretor, “As Lutas” causava uma certa resistência de aceitação (principalmente na parcela feminina entre 14 e 25 anos de idade) por
confundirem o sentido da palavra com lutas –esporte- e não luta de guerra,
revolução, engajamento – remontando a historia do país em uma clara homenagem
ao povo tupinambá e tupiniquim, nos
levando à época antes de os europeus chegarem - até a guerra pela água, em
2096, passando pela colonização, a escravidão e o regime militar brasileiro;
com uma qualidade técnica surpreendente e sem precedentes no nosso pais, não é
pouca coisa.
E ainda que a sensação que fique é a de que o filme poderia
ser mais extenso – mais tempo em tela- ou possuir uma ambição menor em termos
de enredo; é inegável que Uma Historia de Amor e Fúria, assim como seu herói transpassa
a tela e o tempo e se torna grande, relevante e extremamente interessante.
Uma combinação de um ótimo roteiro, com uma excelente ideia,
ótimos artistas e uma necessidade latente de um povo que precisa conhecer sua própria
historia. Que subjuga seus limites e salienta suas qualidades.
Um filme que merece ser visto analisado e lembrado, que
ainda que não tenha conseguido firmar-se em monumento, marca presença na memória
com certeza.
Que conhece bem seu passado, se fazendo presente em tela, se
ofertando como a luz para quem esta na escuridão.
Dia 5 de abril nos cinemas.
"Quem nasceu Livre, não sobrevive ao Cativeiro"
FICHA TÉCNICA
Diretor: Luiz Bolognesi
Elenco: Rodrigo Santoro, Camila Pitanga, Selton Mello
Produção: Fabiano Gullane, Caio Gullane, Luiz Bolognesi,
Laís Bodanzky, Marcos Barreto, Debora Ivanov, Gabriel Lacerda
Roteiro: Luiz Bolognesi
Fotografia: Anna Caiado, Daniel Greco
Trilha Sonora: Rica Amabis, Tejo Damasceno, Pupillo
Duração: 75 min.
Ano: 2013
País: Brasil
Gênero: Animação