Um retrato visceral e extremamente degradante do interior
humano, não de seus sentimentos, mas de seus desejos. A Professora de Piano,
filme do Austríaco Michael Haneke, é tudo isso e mais. Um filme que cai fundo
no poço sombrio do Desejo que Lars Von Trier com seu exímio Anticristo, chamou
de "mal humano delicioso, misterioso e necessário" - claro que na interpretação das entrelinhas-.
Comparo aqui as duas Obras de Lars e de Haneke, porque um, - cineasta -esta para o outro - cineasta -, de maneira absoluta. Ao menos no que diz respeito a mostrar
toda a aversão humana em varias camadas, sem poupar o espectador em nenhum
momento. Porem se com Lars, o ‘botão’ apertado dentro de cada um é o dos
sentidos, sentimentos e emoções e ética em convenções sociais. Aqui com Haneke,
em especial A Professora de Piano, o botão socado, é o da moral humana, física,
e unilateral. É o psicológico que é trabalhado, de maneira arrebatadora,
quase cruel.
O filme que é baseado em um livro do escritor austríaco Elfriede
Jelinek e venceu o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 2001, além
dos prêmios de Melhor Atriz e Melhor Ator, respectivamente para Isabelle Hupert
e Benoit Magimel (a primeira incontestavelmente merecido), conta a historia de
Érika Kohut (Isabelle Hupert), uma professora de piano numa clássica escola de
musica o Conservatório de Viena. Érika vive com a mãe num pequeno apartamento e
detém uma relação de passividade e controle com ela. É uma professora hostil com seus
alunos e impassível de qualquer demonstração de emoção. Quando conhece o jovem Walter (Benoit Magimel), Érika cai numa
perturbação acerca de seus costumes, desconfianças e mistérios, num ode de implosão de seus desejos e loucuras.
O filme conta com uma paleta de cores frias, com cenários assimetricamente
bem posicionados e uma concepção de cena repleta de artefatos e objeto, que dão
aos ambientes uma sensação claustrofóbica e confusa. Tudo é cheio demais, com
cores iguais e indiferentes. Com exceção de raros momentos da própria Érica com
seu vermelho em destaque, seja no batom ou no chapéu aristocrático.
Com a característica do silêncio - marca dos filmes de Haneke- para se compor as cenas, o
filme quase não tem trilha sonora. Ao não ser pelas intervenções inevitáveis dos
dedilhares de piano ao longo da projeção. É importante ressaltar também a
atuação da atriz veterana Annie Girardot que vive a mãe de Érika. Sua
fragilidade em contraponto com seu tom sempre controlador, rígido e
extremamente assustador, compõe bem o clima que o filme exige.
Clima esse de peso e incômodo a todo instante.
O filme traz uma sucessão de convenções que vão desde a
perversão ate a loucura, ambos em graus extremos e doentios. É um filme que
causa nojo, aversão, choca, cria tensão e impressiona pela crueza e frieza que
trata de assuntos que verdadeiramente mutilam a consciência e o senso comum de
moral e dignidade aceita em sociedade.
São cenas como um autoflagelo genital com uma gilete,
espancamento, estupro, agressão a uma idosa, tapas entre mãe e filha, afeto
sexual entre mãe e filha, masturbação, cenas de sexo explicito com direito a
esperma de desconhecidos em pedaços de papel higiênico serem cheirados sem
discriminação. Tudo perverso, tudo de forma insana. Sem planos que escondam
nada ou que se utilizem da edição para abrandar os momentos. Pelo contrario.
Somente
com sons ambientes, onde podemos ouvir a respiração, o engolir da saliva de
cada personagem, vemos tudo isso passivamente em longos planos, em longas
tomadas que parecem não ter fim, mostrando cada segundo de cada ato. Para
chocar, para criar tensão e por isso mesmo fascínio. E com ele a culpa.
Haneke cria o choque e o incômodo não tanto pelas cenas,
afinal tais cenas não chegam a ser tão violentas ou tão degradantes, não mais
do que nossa realidade, não mais que Jogos Mortais ou mesmo Dogville mostraram.
O choque esta justamente na vontade e interesse que ele cria no espectador em
querer ver mais. Em ser levado a atuar como um voyeur diante daqueles atos.
Isso mais do que qualquer outra coisa vista, é o que faz com que A Professora de Piano se torne uma experiência cruel e fascinante, e talvez única
a cada um que o assiste. Ele exprime tudo que ocultamos. E lidar com o desejo,
com o sexo, as vontades, a dor humana é algo delicado. Sempre perigoso sempre
extremo. E Haneke consegue fazer isso solenemente bem.
Nesse ponto o filme se assemelha com o sentido de busca pela Perfeição versus o Bizarro promovido por Cisne Negro do Darren Aronofsky. Desde a relação sem
figura paterna entre mãe e filha – Érika tem seu quarto, que não possui chaves,
mas, contudo dorme todos os dias na mesma cama que a mãe – bem como o extremo
entre o autocontrole através da privação do sexo e o descontrole por isso mesmo
e liberdade do seu Eu, da verdadeira essencial através do desejo descontrolado e arrebatador.
A Professora de Piano não é um filme fácil, não é um filme fácil
de digerir – como curiosidade, na cena de vomito, o vômito é real, e pelo ensejo, é impossível não destacar a atuação completamente entregue de Isabelle Huppert durante cada instante do filme, seu ar robotizado, quase psicótico, sem linhas de expressão, rígida que impressionam e arrebatam – que assusta
justamente por ser tão gélido e ao mesmo tempo tão parte de cada um que o
assiste. Uma parte que ninguém jamais admitira, mas que sentira. Incomodara.
Causara medo, e também que fará parte dos pensamentos do espectador durante
muito tempo, após o fim dos créditos finais.
Como bem diz um dialogo nos minutos iniciais da projeção: "A loucura só encontra seus benefícios na arte. Mas a arte só se beneficia da loucura, quando esta a suporta. A ponto de ser arte e fazer arte. A Arte não provém da loucura, mas dos instantes antes dela. E nisso esta obra se prova e justifica bem.
Brutal, tal qual, um grande concerto de piano.
Brutal, tal qual, um grande concerto de piano.
"Os cães latem
Chocalham suas correntes
E as pessoas dormem em suas camas"
Trailer
FICHA TÉCNICA
Diretor: Michael Haneke
Elenco: Isabelle Huppert, Benoît Magimel, Annie Girardot,
Anna Sigalevitch, Susanne Lothar, Cornelia Köndgen.
Produção: Yvon Crenn, Christine Gozlan, Veit Heiduschka,
Michael Katz.
Roteiro: Michael Haneke
Fotografia: Christian Berger
Duração: 130 min.
Ano: 2001
País: Áustria / França