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quarta-feira, 23 de março de 2016

Crítica: "Boa Noite, Mamãe" (GoodNight, Mommy)

"Isso dói?"



(Recomendação: Só leiam o texto, após assistir o filme. Contem spoilers e descrição explicativa de varias cenas, incluindo o final e seu significado)


Dirigido e roteirizado pela dupla Severin Fiala e Veronika Franz, esse filme austríaco - que tentou representar seu país no Oscar desse ano, e arrematou dezenas de prêmios mundo afora - "ICH SEH, ICH SEH" - do original "Eu vejo, Eu vejo" e traduzido pro inglês e pro português como "Boa noite, Mamãe (GoodNight, Mommy)" - é um deleite para os olhos atentos de cinéfilos de qualquer geração.

Isso porque sua força reside nos detalhes e na busca de refletir o cinema suspense com toques de terror lá em seu ápice em anos passados, - mais especificadamente, com referencias a obras dos anos 70 - onde tivemos um considerável requinte de linguagem pro gênero.

É preciso dizer que o filme tem seu plot real apenas nos dez minutos finais de projeção. Talvez nos cinco últimos se considerarmos os elementos que os compõem. Por tanto, a revelação do "implícito" envolvendo os dois irmãos não é o que o filme quer segurar até o final. O roteiro não visa tornar misterioso a condição que une os dois irmãos no filme; muito pelo contrário. Ele espalha pistas escancaradas ao longo da projeção sem nenhum pudor. Ainda assim é belo constatar sua comunicação visual na sutileza nessas indicações.

Primeiro de tudo devemos lembrar que Hollywood nos acostumou mal. Nos criou a base de obviedade onde sutileza não existe e onde diálogo e edição frenética são sinônimos de Bons filmes (pra eles). Aqui, temos cinema base de suspense, onde se tem comunicação por imagens e não por ação ou fala.

Assim, o que se deve prestar atenção nesse filme é a construção narrativa de sua Mise-en-scène, o cenário que compõe o quadro em cena. Atribuir significado à água, aos reflexos, ao solo mole, às sombras, as cores, as árvores, aos quadros, fotos, a maneira que a câmera se posiciona, a maneira que a câmera se movimenta.

O ambiente é o verdadeiro protagonista do filme. É quem está narrando tudo.

Assim é brilhante notar como o filme nos conta através de um gato, através de um isqueiro, através de um quadro feito por silhuetas de sombras, através de reflexos, da ausência de calendários e relógios, bem como através de um cripta e seus ossos, sua real intenção de existir.

O tempo aqui não é fluido, e é importante salientar isso para que se entenda o seu desfecho final. Que sim é aberto a interpretações, mas é um fato planejado também. Os insetos e seu significado quase mitológico e psicológico, também tem papel importante na construção narrativa do filme. E não o bastante, ainda temos o silêncio que é a melhor fala de todo o roteiro.

Falando de aspectos técnicos, é preciso dar louros ao diretor de fotografia Martin Gschlacht, que compreende o universo que esta trabalhando, inserindo uma palheta de cores vibrantes sempre que estamos em lugar comum aos gêmeos, em contraste a palheta de cores mais escuras e opacas de quando nos encontramos diante da mãe deles - que obviamente oferece uma especie de perigo e apreensão às duas crianças. E isso ocorre, por que acompanhamos o filme pela perspectiva dos meninos, ate o inicio do terceiro ato. A partir dali, de maneira bem assertiva pelos diretores, passamos a ser meros espectadores das cenas. Um manejo do cinema de terror eficaz e esquecido atualmente.



A partir daqui escancararei sem a mesma sutileza do filme, o seu entendimento para ajudar aqueles que não compreenderam. Pois é impossível eu falar sobre alguns elementos sem dar spoilers.

Estejam avisados e só leiam depois de ver o filme. Pois, qualquer informação, como disse no inicio do texto, pode 'estragar' a experiencia visual e narrativa do filme. Só leiam, apos terem assistido.




Temos dois irmãos gêmeos, Lukas e Elias. Elias, que surge primeiro em tela com a regata clara, e Lukas com a regata escura.

Após uma brincadeira com o irmão, Lukas morre afogado no lago em frente à casa. Essa cena é mostrada no inicio do filme, entre varias outras brincadeiras dos gêmeos. Logo, após esse acidente, ha um incêndio na casa deles, e seus pais acabam se separando. (A indícios durante o filme, nas ações de submissão e dominação entre os gêmeos, de que o incêndio tenha sido efetuado pelo Lukas, antes deste morrer afogado).
A mãe fica gravemente ferida no incêndio e precisa fazer algumas plásticas no rosto pra reconstruir a face.
Após a morte do irmão, Elias passa a vê-lo, achando que ele continua vivo. Ele passa a negar a morte do irmão.

Eles se mudam da casa queimada, para uma nova casa, mais moderna. A mãe ao retornar pra nova casa comprada após o incêndio, se recusa a fingir que o filho morto está ainda entre eles. E passa a tratar o filho Elias, mais rispidamente. Por dois motivos. Primeiro, pelo trauma da perda do outro filho, ja que ambos são gêmeos e claramente o vivo faz ela lembrar do outro morto, e pelo acidente em si, onde surge o sentimento de culpa versus a separação do marido. Tudo isso culmina num distanciamento da relação dela com o filho.

Por causa das cirurgias, e desse novo comportamento da mãe, Elias e Lukas (morto) passam a achar que aquela mulher, não é sua verdadeira mãe. E após tortura-la, para querer saber onde esta a mãe verdadeira, colocam fogo nela e na nova casa ( somente o Elias no caso).

Assim ao final o que vemos é um vislumbre da primeira casa pegando fogo, seguida da segunda em flashes.

Como eu disse o tempo não é fluido. A montagem do filme de maneira assertiva pelo montador Michael Palm, não é linear, afinal estamos tratando de um mundo entre o real e o mundo dos mortos. Após o segundo incêndio, mãe e filho (Elias) morrem queimados e se juntam a Lukas o filho morto afogado, enfim juntos na floresta.

Assim além de ter uma comunicação visual genial, o filme brilha principalmente por conta de sua montagem, que escolheu essa direção de fragmentar o quebra cabeça. Quando vemos a os gêmeos olhando a nova casa a venda na verdade estamos vislumbrando momentos após o primeiro incêndio. E é notável que eles fazem a distinção de temporalidade, aos olhos atentos, pelas roupas dos meninos. As roupas indicam qual tempo narrativo estamos vendo.

As simbologias do fogo, da água, dos insetos, tudo remete a esse caráter de morte que ronda o filme. Inclusive a analogia da floresta e das mascaras. As cenas da floresta, indicam o submundo psicológico e sentimental de mãe e filhos. Quando vemos a mãe despida na floresta com o rosto em transe, na verdade, é uma representação dos ecos de angustia desta diante daquela nova realidade. Da perda do filho, do corpo mutilado por um do filhos, da inadequação a ela mesma diante do espelho e do papel de mãe, da nova vida distante de tudo. A floresta representa em filmes de suspense e terror, a quebra do palpável e a chegada do mistico. Pode representar tanto a perdição horrenda, quanto a purificação sagrada. O humano dentro dela, o humano urbano, tende a se quebrar de facetas diante de uma floresta. O filme explora bem isso também. Assim como as mascaras tribais. A mascara da cirurgia contrastando com a mascara dos garotos e ambas escondendo a realidade daqueles três personagens. Um morto, um pirotécnico, uma mãe morta-viva - e interessante ainda a a referencia a múmia nesse sentido, inclusive nos planos que mostram seus primeiros passos em tela, e aquele em que ela surge nas sombras do quarto com as persianas fechadas.

Há ainda outro detalhe bacana, que é quando os gêmeos acham a foto da amiga da mãe, que surge parecido, e que causa toda a comoção neles de que estão diante de uma impostora.

A tortura, como é claro ali, serve não só pro terror psicológico crescente de agonia, como também para simbolizar aquela relação que temos de sagrada entre mãe e filhos se quebrando. E o filme extrapola isso sem pudor algum, quando escolhe os ferimentos em ordem materna e progenitora perfeita, ao fazer os gêmeos primeiro ferirem a boca da mãe - a boca que simboliza fala, educação e alimentação -, depois o útero - quando saem insetos de la, denotando a morte das crias - e em seguida, o arrancar de dentes e da mãe tendo urinado. O filme inteira jogo com a relação materna de maneira inversa. A proteção e criação que se transforma em destruição e perigo. Isso em si perturba.

Ainda há cenas de caráter psicológico, claro, em que mostra os gêmeos constantemente disputando, correndo, e se batendo, com destaque a cena em que eles batem no rosto um do outro e perguntam se aquilo dói.



É um filme denso, perturbador e que carrega um terror psicológico a altura de seus prêmios e reconhecimento.

Não tem nada de ''o mistérios das duas irmãs'' ali. Aqui temos o mistérios dos dois irmãos, e sua querida mamãe.


Imperdível!



Ficha Técnica:

Gênero: Suspense
Direção: Severin Fiala, Veronika Franz
Roteiro: Severin Fiala, Veronika Franz
Elenco: Christian Schatz, Elfriede Schatz, Elias Schwarz, Lukas Schwarz, Susanne Wuest
Produção: Ulrich Seidl
Fotografia: Martin Gschlacht
Montador: Michael Palm
Trilha Sonora: Ekkehart Baumung


Trailer: