Em setembro de 1982, os campos de refugiados palestinos
Sabra e Chatila, localizados no Líbano, foram atacados por falangistas
libaneses, apoiados pelo exército de Israel. A motivação dos ataques já era
evidente mesmo antes de acontecerem. Segundo Bashir Gemayel, da milícia cristã
de extrema-direita Falanges Libanesas, os palestinos que viviam naquele
território eram “população excedente”. Após três dias de seu assassinato – Bashir
não chegou a ver seu projeto higienista se cumprir –, o genocídio foi posto em
prática: 3 mil palestinos mortos, dentre eles crianças, mulheres e idosos. O
evento ocorreu nos campos palestinos de Sabra, situados na periferia de
Beirute, ao sul da cidade, área que se encontrava então sob proteção das forças
armadas de Israel.
Numa noite num bar, um homem conta ao velho amigo Ari sobre
um pesadelo recorrente no qual é perseguido por 26 cães alucinados. Toda noite
é o mesmo número de bestas. Ambos concluem que o pesadelo tem a ver com a
missão deles no exército israelense contra o Líbano, décadas atrás. Ari, no
entanto, fica surpreso ao perceber que não consegue mais se lembrar de nada
sobre aquele período da sua vida. Intrigado com o enigma, Ari decide se
encontrar e entrevistar velhos camaradas pelo mundo. Ele tem necessidade de
descobrir toda a verdade sobre aquele tempo e sobre si mesmo. E, quanto mais
ele se aprofunda no mistério, mais suas lembranças se tornam aterrorizantes e
surreais.
Valsa Com Bashir, filme em animação do diretor Ari Folman,
que quase recria uma espécie de auto-biografia documental acerca dos terríveis
episódios ocorridos durante o Massacre de Sabra e Chatila. Folman assume a própria
persona, numa busca por verdades, por recordações de um passado terrível, e que
por algum motivo se eclipsou em sua mente.
Através de uma narrativa que confere teor documentarista ao
longa, 'Valsa' estrutura não só um enredo forte e pesado, como nos brinda com uma
técnica de animação – desenho a mão, com traços de HQ – pouco usada no cinema nos últimos anos e
repleta de beleza, e detalhes incríveis de concepção em seus traços.
Com uma fotografia que preza por paletas de cores escuras e
densas, repletas de texturas carregadas, iluminação clara, tons de laranja
escuro, amarelo e cinza, compõe um panorama de medo, desespero e terror propício
a um cenário de devastação e horror, típicos de guerras como tal.
Chega a ser irônico o fato da escolha pela animação ser justamente para minimizar as cenas mais explicitas e fortes que poderiam e inevitavelmente tomariam corpo em cena, e tal escolha conferir ainda mais transtorno psicológico e emocional ao espectador. A animação confere uma melancolia que nenhuma filmagem conseguiria transmitir.
Utilizando ainda planos moráveis que constantemente
apresentam travellings longos e aéreos, o filme ainda carrega uma direção de
arte invejável, que vai desde detalhes como um reflexo num olhar de um cavalo
morto, ate a trejeitos de angustia e tensão de um entrevistado ao cobrir o
pescoço nervosamente com o colarinho da camisa.
A sonoplastia assume um papel fabuloso e que confere uma
realidade estética plausível também a projeção.
Com diálogos extensos e que elucidam caráter políticos,
contudo 'Valsa' se apresenta como sendo um filme sem julgamento de culpa partidária.
Mas é incontestável a identificação de vilania ali.
Mediante a uma trilha sonora pesada, caracterizada em sua
maior parte por rock com letras que fazem referencia a momentos de guerra, o
filme ainda conta com estrutura narrativa densa, que quase nos coloca em transe
diante das lembranças ao passo que elas avançam ou confundem mais.
Um soldado valsa entre tiros e morte, com passos delicados e
desenvoltos, enquanto atira, sobrevive, mata e evita morrer. Tudo em Valsa tem
um tom de bela melancolia. Aterroriza e ao mesmo tempo encanta.
O destaque do longa alem de toda sua tecnicalidade esmerada,
fica por conta de uma cena que com certeza esta entre as mais belas e poéticas do
cinema mundial.
Após começar a procurar referencias que o ajudem a lembrar
de seus tempos de guerra e assim conseguir paz, Ari começa a dar vazão a uma
mesma memória recorrente.
A cena é belíssima.
Num plano geral em transversal, vemos um
grupo de soldados jovens, nus emergindo de um vasto mar, durante a noite, numa
fotografia com uma iluminação em foco amarelada provenientes de luzes de
sinalizadores no céu escuro.
Esses soldados se levantam das profundezas do mar e caminham
rumo a praia com uma cidade totalmente devastada, vestem-se sob um grandioso
por do sol, e caminham por entre
corredores de ruas desertas ate encontrarem um grupo de mulheres palestinas em
desespero, onde a câmera traça um panorama, acompanhado de um travelling de
90°.
É sensacional.
Ao final, Valsa com Bashir nos esmurra, e nos transporta de
volta a realidade, nos mostrando o quão drástico e horripilante é a historia
que nossa humanidade carrega, ao mostrar cenas reais de uma equipe de TV, de
corpos dilacerados de crianças e velhos, e mulheres entre os escombros da
cidade massacrada, e mulheres desesperadas ao verem seus familiares ali
devastados.
Valsa com Bashir é uma pequena obra prima cinematográfica não
só pela técnica visual e estética conferida, mas pelo cunho reflexivo - e
especificamente um dado momento histórico -; que se propôs a fazer em tela nos
elucidando a uma das piores capacidades do Homem: o ato da guerra.
"Até onde pode chegar a insensatez humana?"
Ao final, em estrondoso silêncio, o filme nos faz essa pergunta; e assim acaba se tornando uma experiência
única; onde a maior pergunta que fica ecoando tal quais as lembranças de Ari é
justamente essa: 'Ate onde?'
FICHA TÉCNICA
Diretor: Ari Folman
Produção: Ari Folman/ Serge Lalou/ Gerhard Meixner/ Yael
Nahlieli/ Roman Paul
Roteiro: Ari Folman
Trilha Sonora: Max Richter
Duração: 87 min.
Ano: 2008
País: Israel / França / Alemanha
Gênero: Animação
1 comentários:
Não conhecia seu blog e já favoritei, adorei sua visão. O que mais me encanta além da arte belissima neste filme é atrilha sonora perfeita. Convido você a ler minhas impressões também aqui: https://deuvontadededizer.wordpress.com/2009/12/14/valsa-com-bashir/
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