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sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Tatuagem - Critica



“Aqui começamos a fazer a pintura rupestre de um novo tempo”.

Ambientado em 1978, Tatuagem, mostra em plena ditadura militar brasileira -  que já mostra sinais de esgotamento. -  a historia de Clécio (Irandhir Santos) , que faz parte de um coletivo teatral – Chão de Estrelas- ,  que ao se envolver com Fininha (Jesuíta Barbosa), apelido do soldado Arlindo Araújo de apenas 18 anos de idade, cunhado da estrela de sua trupe, Paulete (Rodrigo García); se entrelaça num emaranhado de intensos sentimentos enquanto ambos enfrentam as marcas da ditadura no país, ainda que implícitas em seus direitos a democracia e liberdade.

Em dado momento o filme questiona: O que é Democracia? Democracia é Liberdade? Liberdade é escolha ou é decisão a partir daquilo que nos dão para escolher (uma opção pré-determinada)?
Tal questionamento sintetiza uma parte o poder social critico e político que o filme dirigido e roteirizado por Hilton Lacerda assume ao longo de suas 1h e 50 minutos de duração.

Tatuagem discursa sobretudo a liberdade social e nela incorre sobre os anos de confinamento e opressão de um país desigual quanto sociedade. O filme questiona a moralidade e não por acaso a transparência pessoal e intima de cada um consigo mesmo.
Não por acaso cada personagem parece inferir no espectador um tapa na cara sobre seus próprios preconceitos e predestinações a julgamentos e reclusões quanto pessoas.
Num País que enfrenta em pleno século XXI, uma orla de pessoas calcadas ora pela religião em seu lado discriminatório e manipulativo, ora pela política cada vez mais doutrinal, patriarcal, rígida com Bolsonaros e Felicianos, ora por uma cidadania falha e contraria que preserva a destruição e a anulação ao invés de união e criação em prol das instituições familiares (deturpando qualquer sentido mas ainda assim gritando tal discurso), um roteiro como o de Tatuagem chega a doer e causa um incomodo enorme a quem o assiste, mesmo entre os risos pontuados e deliciosos que ele exibe; por constatarmos que ali, os personagens somos nós mesmos – em militância maior ou menor -  com mais de 40 anos de diferença. Pouca coisa mudou na busca.

O que difere Tatuagem de muitas obras nacionais e mundiais, esta contudo não em seu discurso com viés critico, mas sim em seu despudoramento de encarar e dissertar sob a arte multicolorida e multifacetada a qual se inseriu. O cinema Nordestino nos brinda a cada temporada com filmes que exalam criatividade e segurança em consolidar sua identidade visual. Mas Tatuagem tem a diferença que ainda que ambientado no nordeste, ao contrario de seus colegas audiovisuais, não clama seu amor apenas por sua terrinha, mas se funde em tela ao pais inteiro. Ainda que haja características de linguagem inclusive no texto do filme que nos situe irremediavelmente a Recife/Pernambuco, não há aquela exaltação em mostrar longas tomadas de suas ruas, casas rupestres de barroco forte, ou suas praias estonteantes. O filme se atem a sua trama que é universal a todo o pais.

Há momentos impagáveis e sensacionais que justificam o um minuto ou um pouco mais de aplausos com gritos fervorosos da sala lotada – em ultima sessão do único cinema – sessão e horário - que estava exibindo o filme na cidade de São Paulo onde o assisti – logo após o fim da sessão.
Destaco todos os números musicais do Coletivo Chão de Estrelas, em especial a cena belíssima do personagem Clécio performando  “Esse cara”, de Caetano Veloso, totalmente montado, onde a câmera executa uma panorâmica que intercala um jogo de luz, com foco em Clécio deixando-o em primeiro plano e que termina exatamente no final da música onde o plano abre  e clareia ligeiramente revelando o personagem  Fininha, de meio perfil, totalmente imerso na performance e em Clécio. Outra cena que ocorre pouco tempo depois e que já é meio que clássica imediata de tão delicada e terna que é, que é quando novamente Clécio e Fininha estão no quarto de Clécio e este coloca a canção ‘A noite do meu bem’ de Dolores Duran na vitrola, e chama Fininha para dançar. A cena é tão singela mas tão potente que é impossível não esboçar um sorriso diante daquele intimidade nascente entre duas almas entregues.

Vale destacar também o numero musical de “Ode ao Cu” que qualquer descrição não conseguira exemplificar de maneira justa. Impagável e imperdível – inclusive estou com a canção na cabeça ate agora -.
Alias, me utilizando da liberdade justamente que o filme defende, é importante salientar que a analogia que o texto faz entre Liberdade e o Cu, bem como a utilização que faz do corpo humano e da erotização para defender seus questionamentos é de uma inventividade e coragem impar na nossa cinematografia em muito tempo. A anos a historia do nosso cinema é marcado pelo teor sexual e erótico, mas sempre em tom de banalização ou recurso cômico. O brasileiro culturalmente tem essa relação com o ‘sexual’ com o corpo. Porem aqui, o corpo e o sexo, bem como a erotização de ambos não tem caráter de querer ser apelativo ou mesmo de banalizar nada. Esta ali como algo natural tal quais as cores que a fotografia muito bonita repleta de texturas e contrastes imprimem a projeção.

Ainda com atuações memoráveis em um elenco afiadíssimo – que ainda que o filme se justifique por si só, carregam nas costas sua bem sucedida projeção – destaque a atuação visceral e impressionante de Irandhir Santos,  como Clécio. É admirável perceber as nuances de seus olhares em cada particularidade de emoções que seu personagem carrega. De Jesuíta Barbosa, que consegue levar seu personagem difícil de maneira segura. Difícil uma vez que seu personagem dentre todos carrega o alicerce da trama em seus diferentes mundos intercalados, do quartel rígido e opressor, ao grupo teatral livre e permissivo. Mas quem fica na memória é Paulete de Rodrigo García. Sem nunca cair no caricatural demais, exala beleza e comicidade em cada cena que surge com suas falas certeiras carregadas de sarcasmo e deboche, mas que o ator consegue mais uma vez, no olhar, transmitir todo o peso que sua existência compete naquela fase de sua vida.

Com recursos ate mesmo timidamente metalinguístico, esse que pode se confundir como  “o Moulin Rouge do subúrbio, a Broadway dos pobres, o Studio 54 da favela”, não só transgride o limite ainda existente entre o Cinema nacional atual entre sua arte, seu discurso e execução, como de maneira quase anárquica nos deixa marcados com nossos questionamentos – ainda que saiamos dele de maneira branda e leve, em parte por sua trilha sonora saudosista -.

Como nota, gostei bastante da montagem e o desenho de som de Tatuagem, bem como a Direção de arte e a gráfica dele, mas guardo ressalvas quanto ao ritmo, em parte pelas as vezes desnecessárias longas tomadas de algumas apresentações do Cabaret, que deixam a sensação de que o filme é mais longo do que realmente.

Tatuagem é, sobretudo humano. Um retrato pertinente à nosso país e ao mundo, que de fato explode como um gigantesco e profundo desamarrado cu, e que tem cheiro doce.


Trailer:



Ficha Técnica:

Direção: Hilton Lacerda
Roteiro: Hilton Lacerda
Elenco: Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa, Rodrigo García, Sílvio Restiffe, Sylvia Prado
Produção: João Vieira Jr
Fotografia: Ivo Lopes Araújo
Montador: Mair Tavares
Figurino: Christiana Garrido
Trilha Sonora: DJ Dolores (Helder Aragão)
Duração: 108 min.
Ano: 2013
País: Brasil